Seo José adquiriu o péssimo hábito de bisbilhotar a vida alheia quando chegou à Melhor Idade. Era algum tipo de angústia inconsciente que o atormentava desde a adolescência, mas que aprendeu a aliviar sublimando-a em forma de balela quando veio a aposentadoria. Da janela de seu apartamento acompanhava o dia a dia dos moradores do prédio vizinho da mesma forma que vigiava a rotina de seus vizinhos de condomínio; sabia o nome, profissão, estado civil e o número do apartamento de cada um deles. Assim, as novidades chegavam fresquinhas àqueles que iriam ter com ele nos horários em que saía para comprar algo. O enxerido senhor passava o dia difamando toda a vizinhança com comentários "pseudo-construtivos" e, quando a noite caía, lá estava ele no escuro de seu apartamento apontando seu binóculo para as janelas que conseguia alcançar. Homem educado, comunicativo e de reputação ilibada, poucos eram aqueles que o rotulavam como fofoqueiro, pois a maioria das pessoas acredita que a prática da fofoca é exclusivamente feminina.
Certa
noite Seo José espionou a briga de um casal do prédio vizinho. Através do
binóculo analisou seus gestos e expressões. Mas não identificou o teor da discussão, tirou apenas suas próprias
conclusões. Mal conseguiu dormir devido a uma incontrolável necessidade de
comentar o que viu. Na manhã seguinte, tomado por uma coceira em sua língua
afiada, o discreto fofoqueiro desceu até a padaria, meia hora antes de o pão
sair. Conversava com os que por ali passavam e aproveitava a oportunidade para
disseminar o que havia visto na noite anterior.
− Bom dia! Que manhã mais agradável, não é
mesmo? Pena que a véspera tenha sido um verdadeiro inferno, foi difícil
pegar no sono. – falando baixinho, prosseguiu – Aquele casal do apto
123 teve uma briga feia e lá da minha janela eu ouvia tudo o que falavam.
Parece que a mulher chegou bêbada tarde da noite e o marido desconfiou que ela
é puladeira. Pois bem, acho um absurdo as pessoas não respeitarem o sono alheio, ainda
mais morando num lugar onde as janelas são praticamente coladas. Acho que não
custa nada zelar pelo sossego dos vizinhos, não é verdade? Você não ouviu os gritos?
A noite caiu. Seo José tomou seu lugar à janela esperando fervorosamente
que algo acontecesse. Pouco antes da meia noite percebeu que o mesmo casal
havia iniciado uma nova discussão, mas, desta vez, quem chegara tarde com
atitudes suspeitas fora o marido. O ousado abelhudo fechou as cortinas deixando
apenas uma fresta. Apontou seu binóculo para o apartamento dos vizinhos no
instante em que o marido fechava a janela para que o som da contenda fosse
abafado. Acompanhando o movimento do casal sem poder ouvir o conteúdo do
bate-boca, Seo José ofegando desacertado, com o corpo trêmulo, não mais se
aguentava de curiosidade. Agoniado pela impotência de seu próprio ser,
exprimiu: “Ah, se eu pudesse ouvir o que se passa naquela sala! Já que Deus não
me dá uma audição mais aguçada, bem que o Coisa-ruim poderia me dar!”.
Uma queda de
energia deixou o bairro às escuras segundos depois. Inconformado por não
conseguir espreitar a briga do casal, o bisbilhoteiro deitou-se no sofá próximo
à janela para esperar a luz voltar. Acabou cochilando contra sua vontade.
Vozes e ruídos surgidos do lado de fora do
prédio fizeram com que Seo José saltasse do sofá. Pegou o binóculo às pressas e
apontou para o apartamento do casal que espionara. Com admiração notou que
apenas a mulher se encontrava no local. As vozes persistiam em seus ouvidos
surgindo de todas as direções, mas não conseguiu identificar de que janelas
partiam. Apontou o binóculo para todo o prédio vizinho em busca de luzes
acesas. Naquele horário da madrugada eram poucos os moradores que continuavam
acordados, não havia ninguém gritando ou falando alto.
Intrigado pela gigantesca mistura de sons que ouvia, compreendeu que os cães latindo, som de TV, buzina, barulho de torneira aberta, alarmes e até crianças chorando
formavam um verdadeiro tornado de ruídos e clamores em seus tímpanos. Seo José
havia adquirido uma incrível audição sobre-humana. De início assustou-se com a
profusão de sons que podia ouvir ao mesmo tempo, mas durante a madrugada
percebeu que se fixasse o olhar na direção que desejasse, poderia identificar a
voz ou o ruído que de lá sobrevinha mesmo que envolto numa manta de estampidos
ensurdecedores.
Amanheceu.
No momento em que a janela da cozinha do casal foi aberta, Seo José lançou seu
olhar para o interior do recinto e pôde ouvir com clareza o amargo diálogo
entre os cônjuges na hora do desjejum. Delicados episódios íntimos foram
repassados e discutidos pelo jovem casal que passava por um conflito de
incompatibilidade. O ousado fuxiqueiro babava e lambia os beiços deleitando-se
com cada detalhe que tomava conhecimento. Sua língua ardia pelo desejo de
propagar as minúcias que ouviu. Assim que o casal findou a rancorosa
conversa, Seo José desceu até a padaria e lá contou tudo o que ouvira para os
fregueses com quem conversou.
Suas idas à padaria aumentaram nos dias seguintes, assim como ir ao
supermercado e caminhar pelo bairro, afinal até mesmo a um quarteirão de
distância conseguia ouvir tudo nos mínimos detalhes. O fofoqueiro estava feliz.
Não conseguia mais dormir devido à sua aguçada audição, sentia-se afortunado
por ter várias vezes ao dia notícias abrasadoras para contar. A coceira na
língua não mais o atormentava; ouvir e comentar tornou-se tão mecânico que
horas depois nem mais se lembrava do que havia dito.
Extenuado
e apresentando os primeiros sinais de insanidade devido à falta de sono e repouso, sentiu necessidade de dormir por uma noite inteira. Deitou-se no conforto de
sua cama na tentativa de adormecer, mas as vozes não lhe deixavam relaxar e
esvaziar a mente. Tornou-se escravo do binóculo e das janelas que podia
avistar. Iniciou-se uma batalha colossal entre demência e sanidade no âmago do
alucinado e abatido senhor. No entanto, horas mais tarde o exército de vozes encobriu por derradeiro
até mesmo seus pensamentos.
Passaram-se dias desde que Seo José havia sido visto pela última vez. Os
curiosos do condomínio vizinho tentaram inutilmente espioná-lo; só
conseguiram avistar um binóculo que permanecia imóvel durante horas saído de
uma fresta entre as cortinas de seu apartamento. Todos comentavam sobre a
história do vizinho que enlouquecera de tanto bisbilhotar.
Numa tarde em que todos se divertiam na área de lazer do prédio, o som
estridente de uma sirene de ambulância rompeu a rotina dos moradores quando
estacionou em frente à portaria. Dois enfermeiros desceram do veículo e
correram pelo hall até o elevador. Formou-se uma multidão no local
à espera do fim do mistério que tanto os intrigava; cada um conjeturando sobre
o que estariam prestes a testemunhar. Quando a porta do elevador se abriu, o
silêncio caiu sobre os intrometidos. Seo José estava magro, com olheiras
profundas e cabelo embaraçado.
Trajando uma camisa de força, foi levado pelos enfermeiros até o veículo
enquanto proferia difamações sobre a vida particular dos vizinhos que ali se
encontravam. As fofoqueiras tradicionais da redondeza deleitavam-se com o maior
escândalo já ocorrido na vizinhança. Assim que a ambulância partiu, surgiram
suposições maliciosas que se espalharam pelo bairro a respeito do que realmente
teria acontecido ao rei da notícia.
− Coitado do Seo José! – comentou
uma das fuxiqueiras destilando o veneno – Como é que pode um homem tão bom ficar louco de uma hora para
outra, não é mesmo? Falam por aí que ele fez um pacto com o tinhoso! Uma amiga, que não posso dizer quem é, que da janela dela dava para ver ele fazendo bruxaria dentro do apartamento. Parece que tinha um pentagrama desenhado no chão, velas
vermelhas e pretas acesas, é! Se é verdade eu não sei. Parece que ele bebia e usava drogas também. Bom, não
cabe a nós julgar ninguém, né? Cada um tem o seu estilo de vida e a gente tem mais é que
respeitar as escolhas alheias, não é verdade?
Rodrigo Moura © 2011 Todos os Direitos Reservados
11 comentários:
Rodrigo, que deliciosa surpresa, não sabia que voce escrevia tão bem.
Comecei espiando (como seu José) e só sosseguei quando chegou ao fim do conto.
Isso é uma proesa nos dias de hoje, onde não paramos pra apreciar quase nada.
Diria melhor: é talento mesmo!
Parabéns, beijos Marcia Mah
Oi Rodrigo!
Parabéns pelo texto. Li de cabo a rabo, curioso com o fim do Seu José!!
Abraços,
OSSA, QUANTA ENERGIA BÔUA!!!
MARCIA MAH!!!
...Fico contente por teres gostado do conto!!!
Seu comentário incentiva-me a melhorar nos próximos contos.
Diante desse elogio, a responsabilidade de não deixar cair o nível nos próximos é maior.
Fico feliz por ter espiado o blog, obrigado!!!
BJS!!! RoDrIgO
PONTES, meu querido!!!
Você lê mesmo o que escrevo, hein!
Cada comentário seu é um estimado incentivo.
Sinto sinceramente que meus contos lhe agradam, porém sei que é expert em português...
Então, não se assuste se estiverem em desacordo com a nova ortografia!!!
OBRIGADO + 1a vez!!!
Muito bom!!! Vou te dar um puxão de orelha rsrs eu nunca li algo que voce tivesse escrito,gostei muito da estória e vê se continua escrevendo para nosso deleite.Parabéns!!!
Bem que você poderia ser chamado de Nelson Rodrigo. Gostei do seu conto, um conto rodrigoano...
PAULO, fico contente que tenha gostado,
confesso que este conto é um
divisor de águas em relação ao estilo ao aprendizado.
Obrigadão pela visita e pela leitura!
Abração!
AIR, que surpresa!!!
Confesso que me lembra o ritmo e as pausas da narração do José Wilker no "A Vida Como Ela é"...
Obrigado pelo elogio, amigo!
...Mas espero que o Grande Nelson não se ofenda!!!! Rsrs...
Abraço Grande!
Bem, do poeta eu já conhecia o talento. Agora contista! Adorei o estilo da "Vida como ela é". rs O texto flui, prende atenção, nos leva ao clímax e a um final com cara de "continua"...
Eu adoro e admiro a obra de Nelson Rodrigues, com seu estilo inconfundível, polêmico, de cara lavada. O discípulo está bem no caminho do mestre da vida real! Parabéns, estou adorando este seu jeito novo de escrever.
Beijo
POETA DE ALCOVA, quem me dera!
Nelson Rodrigues é ótimo, mas estava longe de querer fazer algo parecido.
Brinquei com o Air no sentido de lembrar o ritmo da narração do José Wilker, somente isso...
Mas se vocês identificaram um Nelson no meio do texto, não vou duvidar.
Apenas fluiu sem referências.
Thanks, BJS!!!
E de parágrafo em parágrafo, letra a letra, conto e pontos, você vai se encontrando, em referências, inspirações, lembranças, criações... e será você, sempre! Beijo
Continua, continua, continua! rs
Adorei, Rodrigo... me prendeu do começo ao fim, fiquei intrigada, conseguia visualizar as cenas descritas com perfeição...
Que talento, exponha-o cada vez mais!!
Beijos!!
CAROLINA, minha jardineira!
Que bom que gostaste! Fico contente de ter escrito algo que agradou aos amigos.
Estimo muito a opinião de vocês,
então, posso acreditar que estou no caminho certo?
Tentarei escrever mais!!!
Obrigado pela regada!!! BJS.
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